sexta-feira, 13 de fevereiro de 2015

Governos fazem ''política de avestruz'' frente à crise hídrica, criticam cientistas

J. B.


A crise hídrica e suas consequências não são novidade para o meio acadêmico e nem para os governos dos estados do Sudeste, que passam por um período de escassez. Mas, alertas não faltaram nestes últimos dez anos. Em entrevista coletiva, na manhã desta quinta-feira (12), os especialistas da Academia Brasileira de Ciência (ABC) explicaram que desde 2003 providências poderiam ter sido tomadas e mantidas para garantir o abastecimento, e criticam: frente à crise hídrica, a política atual tem adotado uma “postura de avestruz”, que esconde a cabeça e finge não ver o problema à frente.
Segundo os cientistas, deve haver, principalmente, uma vontade política na solução dos problemas. Para José Galizia Tundisi, presidente da Associação de Instituto Internacional de Ecologia e Gerenciamento Ambiental e membro da ABC, a comunidade científica tem muito a oferecer nesse ponto. “Os recursos hídricos são uma questão estratégica, o desenvolvimento de estudos sobre os recursos hídricos são fundamentais para o pais, logo é fundamental que o conhecimento científico acumulado seja usado pelo governo”.

José Galizia Tundisi e Pinguelli Rosa. Transparência na gestão dos governos é fundamental
José Galizia Tundisi e Pinguelli Rosa. Transparência na gestão dos governos é fundamental
Segundo Tundisi, “a crise é muito mais ampla do ponto de vista ecológico, econômico e social do que ela aparenta. Não se trata apenas de uma crise de abastecimento, isso é um dos componentes da crise, há muitos outros em questão”, afirma.
Pontos como a geração de energia, a saúde pública, entre outros afetados pela crise, são abordados na Carta de São Paulo, elaborada por membros da ABC, com análises e soluções com contribuições para a gestão de recursos hídricos no país. “É fundamental que o conhecimento científico acumulado seja utilizado pelo governo”, destaca Tundisi.
Segundo Tundisi, a crise da água em São Paulo se agrava ainda mais por depender de recursos hídricos para a economia e para a população. “A hidrovia do Tietê, por exemplo, foi fechada em agosto do ano passado por problemas da crise hídrica, e ao fechar a hidrovia se despediu 120 pessoas. Isso é uma amostra de como a crise atinge diversos setores da sociedade. Há bancos que estão preocupados com a crise hídrica. Se a indústria diminuir a produção eles terão que rever as carteiras de investimento", destaca.

Paulo Canedo. Pesquisador alertou sobre medidas de curto prazo para o Rio
Paulo Canedo. Pesquisador alertou sobre medidas de curto prazo para o Rio
No Rio, a situação ainda não é tão grave, mas o estado pode vir a cogitar um racionamento caso não exista uma “racionalização do consumo”, como destaca o chefe do Laboratório de Hidrologia da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), Paulo Canedo. “A crise de gestão atual me preocupa mais do que a questão climatológica. Ela está longe de ser uma questão desconhecida no planejamento, é um evento raro, mas que deveria estar contida nas nossas regras operacionais”, ressalta.
Segundo Canedo, o ideal para o governo do Rio é a adoção de medidas em curto prazo, como a redução do consumo de água e luz, além da adoção de bandeiras tarifárias nas contas de água da população, que poderiam barrar o consumo excessivo. “Se o governo não quer que a população mais pobre seja onerada, dê um bônus para o consumidor de baixa renda”, opina.
Outra solução abordada é a redução das perdas do sistema de abastecimento, meta que deve ser adotada pelas concessionárias de abastecimento de água. Segundo os palestrantes, no Rio a perda é de até 30%, quando o recomendado seria de 15%, uma das medidas que deveriam ser tomadas antes de um racionamento no estado.
Um ponto importante da carta é a transparência da informação que chega à população. A disseminação de informações do governo sobre a situação atual da gestão dos recursos é fundamental, afirma Tundisi: “Os governos precisam ser brutalmente transparentes para que possa haver participação. Sem a mobilização da população a tecnologia não vai resolver os problemas”.  “A população precisa ser educada e entender que estamos em uma crise”, alerta.
Tundisi adverte ainda que a escassez de água pode se tornar algo prolongado. “Estamos vivendo uma crise de escassez e não temos informações de quanto tempo durará, ela pode se prolongar mais do que o previsto”. E destaca: “a carta de são Paulo já foi entregue aos governos do Sudeste e aos secretários de recursos hídricos do estado”.
Setor energético ainda é muito dependente das reservas de água
A geração de energia no país depende fundamentalmente da questão hidrelétrica. Atualmente na faixa de 70%, apenas 3% são cobertos pela energia nuclear e eólica. É nas usinas termoelétricas que reside o segundo maior percentual da geração de energia no país, no entanto, como destaca o professor da UFRJ e membro da ABC, Pingueli Rosa, a geração termoelétrica é extremamente cara e o acréscimo é cobrado na conta de luz, além de ser extremamente poluente. “A energia termoelétrica contribui, dentre outras coisas, para o aquecimento global do planeta, emitindo gases para a atmosfera”.
O professor destaca que a geração de energia via usinas hidrelétricas, na região Sudeste, está em situação extremamente grave. Os maiores reservatórios, que ficam nessa região, chegaram a níveis de 17% “Já não há como esses reservatórios retornarem ao nível normal durante esse período úmido, que vai até abril. Há muito tempo que há um esvaziamento progressivo, no sentido de não conseguirem alcançar um nível confortável para garantir a geração de energia necessária ao longo do ano”, destaca o professor.
Rodízio de água é a pior medida para a saúde pública

Sandra Azevedo: "na saúde, crise da água não tem plano B"
Sandra Azevedo: "na saúde, crise da água não tem plano B"
“Quando se pensa em saúde e crise da água, não existe plano B”, afirma Sandra Azevedo, diretora do Instituto de Biofísica Carlos Chagas Filho da UFRJ. Segundo ela, quando se fala da abundância de água doce no país, apesar da escassez, pouco se fala da qualidade e distribuição do recurso. “Deparamos-nos com uma crise que não se iniciou em 2013, mas que veio se estabelecendo ao longo de vários anos, marcado pelo despreparo no uso da água”.
Segundo ela, o rodízio de água, usado como medida para lidar com a escassez de água, é o pior dos cenários. A intermitência do abastecimento poderia gerar uma série de problemas, como o desabastecimento de regiões que se encontram na ponta do sistema, geralmente locais de periferia, além de doenças e infecções pelo consumo dessa água. “Uma rede de distribuição depende de uma pressão para se manter com uma determinada qualidade. Existem fissuras, principalmente com o encanamento de cidades como São Paulo e Rio de Janeiro, que contaminam a água por causa da mudança de pressão”, explica.
Além disso, questões de armazenamento precisam ser revistas. “É preciso ensinar a população a se proteger e a como economizar água eficientemente. Não é mais coisa de 'ecochato', é questão de sobrevivência”, alerta.