Dona Doralice, 88 anos, tomou um
susto: ‘Pensei que a minha casa tinha sumido’, conta como foi ver o lugar onde
mora após o trabalho da artista visual Maristela Ribeiro
Ao sair de casa pela manhã, a
lavradora Maria Luísa Lopes, 84 anos, deu uma olhada na fachada de casa. Há um
mês, a visão era familiar: paredes brancas e janelas verdes. No fim da tarde,
quando voltou, o susto. No lugar da casa estava uma estrada de terra, rodeada
por grama e por uma cerca de arame farpado.
Estava na rua errada? Não. Todos
os vizinhos pareciam estar no mesmo lugar - a Rua das Flores, no povoado de
Morrinhos, a cerca de 40 quilômetros de
Feira de Santana. Avistou o telhado e viu que o imóvel não tinha desaparecido.
Mas... Cadê a porta?
É verdade que a estrada, a grama
e a cerca são comuns em Morrinhos. Só
que, nesse caso, não passava da fachada da casa onde mora desde que nasceu, com
uma pitada de ilusão de ótica.
Quem olha rápido – e até quem
olha atentamente – pode não perceber que ali existe uma fotografia adesiva,
impressa em tamanho real e colada no que antes era a parede branca. A
intervenção faz parte de um trabalho da artista visual Maristela Ribeiro,
professora do Instituto Federal da Bahia (Ifba). Há um ano, ela começou um projeto que pretendia mostrar a
realidade de Morrinhos aos seus próprios moradores e ao mundo.
Não, dona Maria Luísa não está
numa estrada de chão. Está na frente de sua casa em Morrinhos, Feira. Mais
especificamente, na frente da porta - que até ela tem dificuldade de ver
Após oferecer oficinas de arte e
fotografia à população, Maristela partiu para a última fase do projeto, que
começou em dezembro e se estendeu até março. “Não encontrei nenhuma imagem da
comunidade, que existe desde 1940. Imaginei trazer a paisagem regional e usar
as casas como telhado”, afirma Maristela, que usa o projeto na pesquisa no
doutorado em Artes na Universidade Federal da Bahia (Ufba).
Metáfora
Apesar de chamar atenção dos
quase 400 moradores e também dos forasteiros, a casa de dona Luísa não é a
única: as paisagens de Morrinhos foram transportadas para outras nove das cerca de 90 residências
do local.
“Meu objetivo era que as casas
desaparecessem. Para mim, era uma
metáfora sobre o esquecimento do local, sobre como essas pessoas são deixadas
de lado e se tornam invisíveis”. Lá, a maioria dos moradores vive em casas de
taipa, sem saneamento básico. A principal fonte de renda, além da agricultura
familiar, é o Bolsa Família, segundo a pesquisadora.
Morrinhos: cerca de 90 casas, 400
moradores e muito esquecimento
José Boaventura, o seu Nonô, é só
sorriso após a mudança nas casas: ‘Todo mundo amou’
Pois, o objetivo foi alcançado. A
casa de Luísa, assim como as outras, sumiu. “Eu demorei para achar a porta, na
primeira vez”, lembra. Por sorte, viu o poste que fica quase ao lado da casa.
“Agora, olho o poste! A porta fica perto dele”. Até os vizinhos estranhavam.
“Perguntavam: cadê a casa de Luísa? Agora, todo mundo está encantado”,
orgulha-se.
Confusão
A reação de dona Doralice Lopes,
de 88 anos, foi parecida. Seis dias atrás, ela não fazia ideia de que sua casa
tinha se transformado em uma cerca que separa a estrada de terra de um rebanho
de cabras.
Nos últimos quatro meses, o
filho, o lavrador José Boaventura, 68, esteve sozinho na casa de três quartos –
ela descansava na casa de outra filha, em Salvador, depois de uma cirurgia “nas
vistas”. Quando chegou, não reconheceu a residência onde sempre morou.
“Perguntei: cadê minha casa,
gente? Achei que tinha sumido! Quando saí, minha casa era branca. Voltei e
estava verde!”, comenta, deslumbrada. Ela nunca tinha visto uma foto em tamanho
real. Agora, sentada em um banco de madeira sem recosto, dona Doralice também
vê a Rua das Rosas, embora a tal rua não fique ali. O que ela vê, na verdade,
é a fachada de outra casa que reproduz a
via do povoado.
Artista Maristela Ribeiro
(calça), em frente à casa de dona Doralice (laranja): metáfora
“Eu nasci, me criei e perdi os
dentes em Morrinhos, mas nunca tinha visto uma coisa tão bonita!”. Acostumado a ouvir promessas de políticos que
não se concretizam, o filho dela, seu Nonô, achou que o mesmo fosse acontecer
com a nova casa. “A gente pensava que não ia sair nada. Quando ela (Maristela)
chegou e jogou o papel, foi que a gente viu. Todo mundo amou”.
Atração
Das dez casas, seis ficam na
praça central da comunidade - que também concentra a maior parte da vida do
povoado. Quase de frente para a igreja, a cachorra Pintada corre em direção às
garças que sobrevoam os mandacarus. Contudo, só a cadela está realmente ali.
Garças e mandacarus estão representados na casa da lavradora Joana Lopes, 52.
“O povo vem filmar, gravar, tirar
foto. Eu fico até preocupada, do jeito que as coisas estão hoje, né?”, dizia,
enquanto um grupo de crianças parava em frente à casa para admirar a paisagem.
“Ver a casa assim é bom demais. Pena que a gente ainda não tem condições para
reformar dentro, né?”, lamentou, mostrando a parede lateral do imóvel,
construída com adubo de barro.
Hoje, Maristela é reconhecida por onde passa, em Morrinhos. Não é política, nem popstar. Mas, lá, é quase uma celebridade. “No início, eles tinham desconfiança, mas são muito hospitaleiros. Perceberam que seria uma troca, porque eles têm uma estética própria”. E se depender dos moradores, essa estética vai ficar exposta por muito tempo, como garantiu dona Doralice: “Não deixo tirar. Só o tempo pode levar embora”, avisa. Correio24horas